segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Morri No Outono...Por Paula Justiça


Morri No Outono
Não me lembro do dia nem mês, mas sei que estavamos no Outono. Mataram-me e é isso que vos venho aqui contar. Não é que tenha sido uma morte espectacular, mas vale a pena ser contada, pois não há muitas mortes como a minha. Estava um calor nada normal para a época do ano, por isso lembro-me que estava vestida com uns calções desbotados e uma blusa bastante colorida, largueirona e sem mangas.
Como todos os grandes assassinos, K. teve a pobreza como má conselheira. Os rendimentos não eram elevados, mas as despesas eram tiranas e as dívidas tiranos dobrados. Um homem que não ganha o suficiente para deixar dinheiro de lado tem qualquer coisa de repugnante, como aqueles filantropos, que gastam a fortuna a socorrer os outros, sem cuidar dos seus herdeiros. Joaninha dos olhos verdes, sua amiga, já me tinha dito: este homem não é mau, é simplesmente infeliz. E a mim me disse uma vez, face to face, eram já umas duas da manhã: Serás tu mau, meu amigo?    
- Não! respondeu-me sem grandes hesitações...Não sou mau, sou pobre!
Bem... Morrer no outono não é de todo mau também, uma vez que temos mesmo que morrer. O dificil realmente é alguém ter a pachorra de matar-me. Que diabo eu fiz para merecer isso? Está bem, não sou nenhuma santa porém, tem gente bem pior que eu por ai, que morre  de velhice. Quisera eu ter chegado aos sessenta anos, teria tido mais tempo para aproveitar a minha aposentadoria, caramba! Só trabalhei a vida toda! E aqueles calções desbotados! Bem podia o assassino ter me avisado antes: -Vai  arrumar-te melhor um pouco, porque hoje tu vais morrer com estilo.Então eu me vi  morta diante de um médico de olhos lindos mas, vestida daquele jeito desmanzelado, não, ninguém merece mesmo isto.
É claro que é uma palermice deduzir que os pobres são semelhantes aos maus, felizmente quando agem incorretamente não é pelas mesmas razões e consigo muito bem vislumbrar que os motivos que podem levar uma pessoa má a matar não são os mesmos que conduzem um pobre a um ato indecoroso. Matar alguém custa muito, principalmente quando não estamos habituados a isso. K. estragou a vida dele com a minha morte, não lhe perdoo e vou assombrá-lo até ao fim dos meus dias! Só quando a minha alma desaparecer da face da terra o libertarei, mas não sei dizer o tempo que isso vai demorar, porque segundo me disseram terei de andar aqui até que me libertar de todos os ódios e raivas. Será verdade?
Se era para me roubar os Euros, foi desnecessária a minha execução, pois eu teria-lhe dado o que tinha . É verdade que ia ficar com muita raiva depois, mas raiva é uma coisa que dá e passa. Que o "filho da mãe", me perdoem o palavreado, me deixasse nua e eu ia continuar vivendo com este episódio, ia ter até quem achasse graça no acontecido. Nãããão...O bobão tinha que me exterminar! Muitas vezes lhe roguei a praga, mesmo antes de ele o fazer, de que um negro anão e gigante o acabaria por sodomizar, mas isso foi nos tempos em que não me largava, porque queria casar comigo, ou pelo menos era o que ele me fazia acreditar com os seus poemas melados e com os discursos que intercalava nas serenatas às cinco da manhã!
Primeiro assediou-me. Deixei-me ir porque estava num daqueles dias em que o ego anda mesmo a arrastar-se pelo chão. Disse-me pela centéima vez que se sentia atraido por mulheres como eu, mais velhas e com um ar desengonçado. Não sei o que me deu para acreditar em tantas falácias seguidas! O certo é que acabei por o deixar entrar no meu mundo, que era a minha casa. Plantas por todo o lado, livros a cobrirem as estantes e o chão, pó a tapar as janelas da luz teimosa do sol. A louça da Vista Alegre a colorir a vitrina do armário da sala! Logo que a viu começou a perguntar o que sabia eu sobre a origem de cada peça e sobre o seu preço. Mas eu sabia muito pouco deste assunto, a louça tinha me sido dada pela minha mãe, nunca lhe achei piada, mas guardei-a da mesma forma que ela o faria. Da Vista Alegre só me lembro do museu e das noites de festa, quando as moscas pousavam na comida, mas adoro a minha mãe!
A verdade é que eu estava com vontade de ouvir aquilo tudo.De sentir alguém interessado no  que digo e no que sou. Há que tempos que ninguém me fazia sentir especial! Não importava se aquilo era falso ou verdadeiro, o facto é que naquele momento me senti aquecida. Posso até culpar o miserável por me matar, mas eu também contribui significativamente para isso, pois deixei-o chegar demasiado próximo, depois de andar uma vida inteira a mandá-lo bugiar. Imagino agora o discurso com que se poderia defender:
- Verdade verdadeira é que nunca matei ninguém virtualmente... nem mesmo por amor! Foi só por interesse! Sou um avatar pobre e mau. È verdade que nem todos os pobres são maus...mas eu nasci na Rua da Rosa em Lisboa, num sotão imundo, no mesmo dia do Camilo Broca. Uma triangulação astral lixada! Matei porque queria ficar com  o serviço da Vista Alegre  da mãezinha dela, que era do tempo da Carlota Joaquina! Não sou doido... sei perfeitamente o valor de cada peça! Uma parte dos nossos males provém de haver demasiados homens excessivamente ricos ou desesperadamente pobres. Por felicidade, no nosso tempo, tende-se a estabelecer um equilíbrio entre os dois extremos. O crime, tal como o casamento que ela  sempre me negou, talvez por pressentir o meu lado errado da noite, são um meio como outro qualquer para criar valor e atingir os nossos objectivos! Hoje posso viver tranquilamente no México, onde sou famoso como pintor.
- Sim, assumo, apelidaram-me de Di Cavalcante, devido às minhas múltiplas facetas, porque adorava pintar a sensualidade das mulheres, em especial das mestiças. Apaixonei-me loucamente por uma mestiça e tornei-me um boémio, que amava a vida acima de qualquer coisa.... enfim... até que chegou o Outono, apanhei a febre das carraças, adoeci, nunca mais a vi! Provavelmente receava que lhe passasse o febrão, de modo que se pôs a andar antes que eu a deslumbrasse com os meus conhecimentos do Kama Sutra, que acabara de estudar num curso de verão em Amarante, dado por uma excêntrica que lia poemas a meio da noite na torre da igreja, tal como eu lhe costumava fazer, sentado na escadaria do outro lado da rua.
Viver não é fácil, mas morrer ainda mais dificil é. Estrangulou-me! Ainda me lembrei da Higiene do Assassino enquanto ele me estava a apertar o pescoço, uma peça de teatro que fui ver em Aveiro, mas no minuto seguinte estava morta! Agora, que já passou mais de um ano, ele conseguiu recompor a vida e está no México, segue os passos da Frida e tornou-se um pintor de renome. A mim esqueceram-me, talvez seja referida na Biografia dele, quando descobrirem que foi ele o assassino, ainda por cima por causa da louça da Vista Alegre! A  minha vingança é assombrá-lo, dar-lhe cabo da vida aos poucos, arranjar forma de darem com as evidências que possam provar quem foi o culpado. É certo que sempre recusei ir para a cama com ele, namoriscar e casar-me, mas mesmo que não tivesse sido por isso e tudo se tivesse resumido à louça da Vista Alegre, não me parece uma razão válida e suficiente para me ter morto, ainda por cima num Outono como já não havia há setenta anos, um Outono quase Verão!
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Este foi iniciado por Paula e continuado por Fátima, Hilda e Zeke.:)

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