segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A Caixa De Chocolates...Por Paula justiça


A Caixa De Chocolates

Comi-os todos, não sobrou nem um! Primeiro comi os que estavam embrulhados em prata vemelha, depois os da prata verde, a seguir os da
amarela, mas não consegui parar e depois foram todos os outros! Faço sempre isto quando me oferecem chocolates, o estranho desta vez é
 que quando voltei a olhar para a caixa ela estava cheia. Então no dia seguinte repeti a dose. Ela voltou-se a encher dutante a noite. Depois de
 uma semana comecei a sentir-me realmente mal fisicamente, apesar de andar muito mais alegre do que o costume. A minha cara estava cheia de pontos negros, parecia novamente uma adolescente com acne, com seborreia na pele, com caspa no cabelo. É claro que não foram só os chocolates, foi toda a minha vida que mudou no espaço de uma semana. Estou arrasada!
- Ela mudou toda a minha vida. Solitário no meio dos meus irmãos de roupa vermelha, de roupa verde, de roupa amarela, eu, com a minha
roupa cinzenta nunca era escolhido. Depois chegou ela e comeu-me. Isso mudou tudo. Sendo solitário, sempre fui pacífico, nunca me identifiquei
com os serial killers das séries americanas, em que uma criança solitária se transforma necessariamente em assassino. Mas desta vez aconteceu. Ela mudou toda a minha vida ao comer-me. Matei os meus irmãos, reproduzi-me e continuei a ser comido por ela.
Ouvi o chocolate a lamentar-se e pensei, como sempre, que estava a ter alucinações, mas não me importei, estou habituada a sensações estranhas, que os outros não podem entender, nem sequer o meu filho! Sempre que o posso observar sem ele notar fico estarrecida com a sua delicadeza, com os seus gestos suaves, com o cuidado que tem em não estragar nada. Como pode ele ser o oposto de mim? Tenho pena que me tenha de aturar, que não se posso livrar de uma mãe que não o pode fazer feliz. Já repeti muitas vezes isto ao trinca-espinhas, mas depois da caixa de chocolates se ter excedido ele resolveu ir dar um giro, estava farto de me aturar!
Poucos minutos depois reapareceu, trazendo uma caixa de gomas com as cores do arco iris... sim, eram gomas de mascar, diferentes das americanas, a que eu estava habituada. Uma vez que elas são docinhas e simplesmente mascadas...vão-me ajudar a trazer sentido à vida. Adoro comer guloseimas diferentes! Espero que meu fígado aguente, pois vou comê-las até me fartar!
Isto era o que eu estava a pensar enquanto comia as primeiras gomas, mas ainda não me tinha apercebido que também com elas aconteceria o mesmo, que se iam reproduzir como os chocolates e que não ia parar de comer chocolates e gomas até ficar doente. Foi o que aocnteceu, gradulamente. Por isso é que uma manhã vi o trinca espinhas a fazer a mala para ir embora. Com uma espinha na boca, como sempre!
Não tive pena, estava farta do cheiro a peixe! Os chocolates e as gomas fizeram-me esquecer de mim. Fiquei feia, com a pele brilhante e exageramente gorda, demasiado de repente! Que homem poderia querer estar com uma mulher assim? Mas para que queria eu um homem, tendo gomas e chocolates sempre à disposição? Para que queria eu alguém para me fazer esquecer de mim, se isso podia acontecer de cada vez que mastigasse?
O que eu mais gostava nele era a companhia e acabara de perder um grande amigo, só de pensar nisso mais vontade me dava de comer! Também me agradava que fosse tão esquelético, porque detesto homens com mamas, só de os ver fico arrepiada, imagino as carnes caídas e perco logo todo o apetite! Só não me consigo recordar como nem quando resolvi substituir os homens pela comida, mais propriamente pelos chocolates e pelas gomas, que se tornaram a única forma de me acalmar. É bem verdade que um homem pode ser muito gostoso quando bem degustado, e vá lá, também não engorda e faz milagres à pele. Deve haver um jeito de escaparmos dos vicios! Enquanto penso nisso, vou enchendo meu pancreas destas porcarias deliciosas.
Passado uns dias soube que o  trinca-espinhas tinha emigrado  para o Brasil. Não demorou nem um mês e já tinha casa, telefone fixo e internet. Tinha saudades minhas e começou a contactar-me assiduamente, sempre a tentar convencer-me a ir ter com ele, a deixar o meu filho entregue ao pai, a esquecer as gomas e os chocolates, a mudar de vida. Mandou-me a cópia do CD dos Deolinda por correio, depois de me postar todos os dias a canção no meu mural, até já a sei de cor! Entretanto, para além do meu aspecto ter piorado drasticamente e ter passado as férias do verão em casa, comecei novamente a trabalhar, o que fez com que as conversas com ele se reduzissem e a sua convicção em me convencer diminuisse gradualmente.
É Outono em Portugal, mas no Brasil é Primavera. Lembrei-me disto enquanto falava com ele ao telefone, ao mesmo tempo que comia uma romã sumarenta e docinha. Enumerava-me as cores dos alimentos que estava a comer, vermelhos, amarelos, azuis, porque nasci eu a preto e branco? Todas as minhas conversas com ele eram dietéticas, minimais, herbívoras, ele contava-me as refeições que fazia e eu falava-lhe do quintal, dos roxos, dos verdes, dos castanhos, porque é que o Outono me entristece? O meu filho, coitado, só ouvia as minhas frases monocórdicas sobre as aventuras  no meio das plantas e pensava que eu estava a enlouquecer:
- Se fosse primavera, as trepadeiras não tinham coberto os telhados. Na Primavera as flores voltam a cobrir o quintal. Se fosse primavera, os pardais empoleiravam-se nos espantalhos.
-Só consigo ver os  picos dos cactos com os óculos novos. Os cactos tomaram conta das traseiras de todas as casas.
-Foi por causa dos maracujás que não me piquei nas urtigas. Vi a cara dela quando começou a anoitecer. Foi por causa das urtigas que fiz esparregado e que a cara dela me pareceu a minha.
- Está um monte de sonhos no quintal, parecem folhas. Se eu comer este monte de folhas, passo a noite a caminhar em direcção à lua.
- Mãe, porque dizes essas palermices ao telefone? Porque é que ele te deixou? Porque não deixas de comer chocolates e gomas? Não vês que estás cada vez com pior aspecto? Não notas que a tua pele está toda estragada? Mãe, porque não te sentas aqui a falar comigo? Porque tenho de ser eu a tomar conta de ti e não tu de mim? Não seria normal que me perguntasses o que fiz durante o dia, se as aulas correram bem, se já namoro? Porque nunca me perguntas nada? Se fores para o Brasil levas-me contigo? Mãe, por favor, não me deixes com o pai, odeio-o!
Sim, era essa a razão de eu continuar a querer esquecer-me de mim, o relacionamento com o pai do meu filho continuava a ser o meu maior pesadelo! Desde o momento em que o deixei que tenho alucinações, como ouvir o chocolate a lamentar-se por ser comido ou o limoeiro a chorar por estar doente, ver as flores a dançarem no quintal e as borbuletas a darem saltos mortais. Não conseguia explicar isto ao miudo, o que me tinha acontecido e o que sentia, por isso ficava calada, à espera que ele contasse tudo o que quisesse sem eu ter de lhe perguntar seja o que fosse! Às vezes apetecia-me pedir-lhe ajuda, pedir-lhe que levasse as gomas para dar aos colegas e que deitasse fora a caixa de chocolates.
E foi o que ele acabou por fazer, mesmo sem eu lhe pedir! Queimou-a na lareira e fez desaparecer as gomas. Na semana seguinte o trinca-espinhas voltou, já sem a espinha na boca. Vinha cheio de cores e de odores, conseguiu agradar-me e aceitei-o de novo. A minha vida voltou ao normal, faziamos amor uma vez por semana, ele fazia-me o pequeno almoço ao domingo, eu fazia o do meu filho durante a semana, o miudo começou novamente a ter boas notas, eu voltei a ser paciente no trabalho, aceitei passivamente que me baixassem o ordenado, mas continuamos a ir ao centro comercial aos sábados de manhã à procura das promoções, quando tinha menos gente e ninguém reparava no nosso fato de treino desbotado. Até que num sábado, quando abri a porta da entrada, estava pousado no tapete um embrulho igualzinho ao que me tinham dado há uns meses atrás, desembrulhei-o apreensiva, ali estava novamente a caixa de chocolates!

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Paula faz partilha neste com Abade, Maria de Fatima e Hilda.:)

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